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sábado, 24 de novembro de 2012

Harmonia do encontro através da palavra


Pela cultura -  a harmonia. Seria tão bom se esta se estendesse por todo o mundo...


A pedido do 'Sabático', os poetas Ronny Someck, israelense nascido no Iraque, e Khalid Al-Maaly, iraquiano, se reúnem no território neutro de sua arte - a favor do diálogo entre judeus e árabes

23 de novembro de 2012 | 18h 00

Ronny Someck é um judeu iraquiano nascido em Bagdá em 1951, mas desde os 2 anos de idade vive em Israel - primeiro, em campo de imigrantes e hoje, em Tel-Aviv. Abandonou uma carreira promissora de jogador de basquete pela poesia, viveu a contracultura israelense e é influenciado por Alan Ginsberg, Marilyn Monroe, entre outros ícones americanos. Escreve, ilustra, participa de apresentações lítero-musicais, dá aulas de escrita criativa. 
Khalid Al-Maaly é filho de beduínos e nasceu no deserto do Iraque em 1956. Só aos 12 anos foi viver numa pequena vila, onde aprendeu a ler, a escrever e a pensar. Aos 23, teve que deixar o país comandado por Saddam Hussein. De espírito nômade, viveu um pouco na França e décadas na Alemanha, onde fundou uma das mais importantes editoras do mundo árabe - Al-Kamel (Camelo), até decidir, no ano passado, que precisava de um pouco do sol do Oriente, e está agora no Líbano. Escreve poesia porque precisa cantar, porque é como os homens que conduzem os camelos no deserto: na solidão, cantam. Sua religião? “O amor.”
Someck e Al-Maaly estiveram em São Paulo na semana passada para um debate, na USP, sobre poesia oriental. O primeiro aproveitou para lançar Gol de Esquerda (Annablume, 118 págs., R$ 30), sua primeira obra publicada aqui. O segundo, infelizmente, segue inédito. 
Numa tarde de temporal, os dois poetas aceitaram a sugestão do Sabático e conversaram sobre literatura, identidade, deslocamento, guerra, paz, liberdade, religião, Primavera Árabe e Palestina, entre outros temas. O tempo começava a fechar, de novo, também em Israel e na Faixa de Gaza, mas os dois ainda estavam sob o impacto de São Paulo - os cheiros, os sons, as pessoas. O discurso - de Someck, pelo menos - era de esperança por dias melhores. Na volta para casa, desanimado, mandou a seguinte mensagem: “Meu avião pousou há poucas horas e é muito difícil voltar da alegria do samba para o som da sirene vermelha que ouvi há pouco. Com sorte, este foguete lançado contra Tel-Aviv foi interceptado. Espero que tudo acabe logo e a vida volte ao normal.” Não que o momento anterior fosse, verdadeiramente, de paz. Al-Maaly, disse, de longe, que como poeta preferia não comentar o novo exercício de barbárie no Oriente Médio.
A seguir, os principais trechos dessa conversa caleidoscópica feita ao som de todas as línguas dos poetas - Al-Maaly falou quase o tempo todo em francês, mas usou, aqui e ali, expressões árabes e alemãs; Ronny optou pelo inglês (mas cantou Tom Jobim em hebraico e falou em árabe com o novo amigo).
INFÂNCIA
Ronny Someck. Tive uma infância incrível, mas não foi na presença de outras crianças. Passei esse tempo na cafeteria do meu avô, com os amigos deles, e foi nessa época que aprendi a ler. Quando as crianças liam e viam figuras do livro de escola, meu avô usava o rótulo da garrafa de Arak para me ensinar.
Khalid Al-Maaly. Nasci no deserto. Minha família era beduína, meu pai era casado com quatro mulheres e eu tinha muitos irmãos. A vida era muito difícil, não tínhamos muito o que comer, beber ou vestir. Era uma vida dura. Só fui para a escola com 12 anos.
DESLOCAMENTO
Someck. Nasci em Bagdá e minha família se mudou para Israel, para um campo de trânsito para imigrantes, quando eu tinha 2 anos e lá encontrou outra cultura. Durante toda a minha vida, me sinto como um homem que gosta de construir pontes entre o Ocidente e o Oriente. Tento fazer esse deslocamento na poesia. 
Al-Maaly. Quando entrei na escola, eu morava numa vila. Depois me mudei para a cidade de Samawa. Já tinha aprendido a ler e a escrever e comecei a publicar poemas e a desenvolver uma consciência política. E fui obrigado a deixar o Iraque em 1978. Fui para a França, depois para a Alemanha. Vivi em Colônia até o ano passado. Sou um beduíno, vivo mudando, e agora estou em Beirute. Passei muito tempo na Alemanha e vivo bem também no Oriente, com um pouco de sol e perto do Iraque. Dei o nome de Camelo à minha editora.
A GUERRA EM SI 
Someck. Esta é a grande sombra em nossas vidas. Pertenço ao grupo de Israel que luta pela paz e que gostaria de tirar a palavra guerra dos dicionários do Oriente Médio. É um sonho. Infelizmente, poetas não podem assinar acordos de paz.
Al-Maaly. Venho de uma tribo beduína e eles fazem pequenas guerras. Quando cresci, eu já estava em outra cidade, e a guerra era uma espécie de comunicação cultural. Mas como poeta eu odeio a guerra, todo tipo de guerra. 
A GUERRA NO DIA A DIA
Someck. Tenho uma filha de 21 anos. Criá-la dizendo não pegue este ônibus porque pode ter uma bomba não foi fácil. Não é a vida real. Conheço uma mulher de Jerusalém que mandava os dois filhos todos os dias para a mesma escola em ônibus diferentes. Isso não é um jeito normal de viver. É uma realidade louca. Penso em árabes e judeus juntos, comendo juntos, lendo os mesmos poetas. Precisamos apertar as mãos. Não é justo conosco e não é justo com eles. Se eu tiver que pensar num poeta símbolo de Israel, pensaria no pianista dos filmes de caubói. Sempre tocando para ninguém, ouvindo as conversas, vendo os revólveres e, de tempos em tempos, dizendo: por favor, não atire em mim, sou apenas o pianista. Espero pelo dia em que colocarei meu piano não no saloon, mas na sala de concerto. Porém, ainda teremos de esperar.
Al-Maaly. A guerra é uma espécie de sobrevivência. Somos obrigados a fazer a guerra, mas não partilho dela.
PAZ
Someck. Por mim, viveríamos em paz a partir deste minuto. Sou otimista. Um dia, um minuto depois do acordo de paz, acho que os árabes e os judeus comentarão: como foi estúpido lutar por todos esses anos. 
Al-Maaly. A guerra também é um jeito de sobreviver, como a paz. Todos os dias fazemos uma coisa e a outra. Se aceitarmos a paz agora, pode chegar alguém um dia qualquer e fazer a guerra. Para os poetas, a única solução para estar vivo, ser criativo, ver o mundo, os outros, a história e o passado é a paz.
PALESTINA
Someck. A Palestina precisa de um país. Saber que há uma fronteira entre nós, que devemos levar nossos passaportes quando formos visitar o outro país é a melhor coisa para os judeus e para os palestinos. É certo para mim que esse dia vai chegar. 
Al-Maaly. Compartilho a opinião de Ronny Someck e de outros intelectuais judeus, como Amós Oz, e de Edward Said, entre outros. 
Someck. Khalid tem uma editora e publica Amós Oz, Sami Michael...
Al-Maaly. Na minha editora, levei a cultura judaica iraquiana de volta aos países árabes. Os autores escrevem em várias línguas. 
Someck. É uma forma de promover a paz.
PRIMAVERA ÁRABE
Someck. Espero que essa revolução mude a cabeça das pessoas e que elas passem a pensar apenas na paz. Tenho três livros publicados em árabe - o último saiu no Cairo, e não é usual que se publique, lá, poetas judeus. Espero celebrá-los num outro tipo de revolução,
Al-Maaly. Tudo começou na Tunísia e eu estava no Cairo quando ela chegou lá. Fiquei na cidade a maior parte o tempo da revolta e foi uma coisa maravilhosa. Porém, a revolução só acontecerá no momento em que realizarmos as mudanças. Antes, é uma outra coisa, é só uma fatia do bolo.
RELIGIÃO
Someck. Respeito pessoas religiosas, mas gosto de uma frase do comediante Lenny Bruce que diz que todos os dias as pessoas se afastam da religião e retornam para Deus. Tenho uma vida religiosa tradicional, mas peço aos religiosos que não tentem me influenciar. Viva e me deixe viver. Acreditamos no mesmo Deus e andamos em sua direção, mas eu não gosto de usar o quipá. Gosto, mas não quero. 
Al-Maaly. Como diz o poeta e sufi árabe Ibn Arabi, eu acredito na religião do amor. Só.
LIBERDADE
Someck. É a primeira linha da nossa religião. Sem liberdade não temos nada.
Al-Maaly. É um direito meu e do outro.
BRASIL
Someck. Há muitos brasileiros em Israel, conheço a cultura daqui. Lá, cantamos músicas brasileiras em hebraico. Vim a São Paulo e tentei sentir o cheiro da atmosfera de dia, de noite, no ônibus, na livraria. Vi uma cultura incrível de livrarias aqui; é como se fosse uma sinagoga cultural.
Al-Maaly. Meu primeiro contato com o Brasil foi em Bagdá, no Café Brasilia, frequentado por intelectuais. Depois, conheci escritores brasileiros na língua árabe, como Jorge Amado e Machado de Assis. E os de origem libanesa Raduan Nassar e Milton Hatoum, que li em alemão. Quando vamos a um país, mudamos as ideias que temos dele. Não se trata apenas de conhecer pelos livros, pela música, cinema ou história. É sentir, olhar. Uma mistura: isso é o Brasil. Daqui, já publiquei O Homem Que Calculava, de Malba Tahan, e quero editar Raduan Nassar.
O SENTIDO DA POESIA
Someck. É escolher uma palavra que todos conhecem, misturar com outras, construir um novo pensamento e tentar criar uma nova luz.
Al-Maaly. Escrevo porque tenho a necessidade de cantar. Entre os beduínos, o homem que conduz os camelos, quando está só no deserto, ele canta. Eu estou lá. Estou só e canto sobre a vida, sobre mim. Outros vão escutar e, talvez, cantar também.
A DESCOBERTA DA POESIA
Someck. Eu tinha 16 anos, era jogador de basquete do melhor time de Israel, e escrevi meu primeiro poema para uma garota da escola. No minuto seguinte pensei: você é macho, você não escreve poemas. E rasguei. Cheguei em casa pensando naquilo e logo estava escrevendo de novo. Um atrás do outro. Mandei para duas pessoas pedindo a opinião delas. Um era o poeta David Avidan, que escreveu de volta elogiando. O outro era um editor de um jornal. Eu só queria a opinião dele e, quando vejo, meus poemas estão no jornal. Era meu segredo! Mas ele errou a grafia do meu nome e fiquei aliviado. Meu treinador veio comentar que havia um poeta bom com nome parecido com o meu. Rimos disso. Voltei pra casa e mandei outros poemas para outros jornais. Todos publicaram. O treinador, que é como um Deus para o atleta, comentou de novo e não me aguentei. Contei. Mas nunca disse à garota que comecei a escrever por causa dela. Ninguém é perfeito.
Al-Maaly. A poesia nasce dentro de cada um. Nós nos inspiramos, só não sabemos por quê.
LITERATURA E MUDANÇA
Someck. A literatura influencia as pessoas. Amós Oz, David Grossman e A.B. Yehoshua são soldados do exército da paz.
Al-Maaly. No Iraque, existe a figura da mulher que é chamada para dizer palavras poéticas para o morto no velório. Na catástrofe, a poesia é a primeira coisa que sai. 
ESCREVER PARA QUEM
Someck. Quando escrevo, tenho noção apenas do espaço entre os meus olhos e o papel. Se gosto, publico, mas isso é consequência. Poesia é uma porta para um mundo secreto. É como um bom vinho. Você pode viver sua vida toda sem beber uma taça, mas sabemos que o vinho faz a vida mais bonita.
Al-Maaly. Escrevo porque preciso. Se os poemas chegam aos leitores é uma outra coisa. Isso quase não me interessa. 
PRODUÇÃO E CONSUMO
Someck. As pessoas têm preferido clipes de três minutos a filmes como ...E O Vento Levou. Sinto o cheiro da poesia aí. Talvez ela se torne o título que vamos dar para descrever, em uma ou duas frases, nossa vida. Em Israel, as pessoas gostam de poesia e meus livros vendem, mas não vivo disso. Para o pão, preciso participar de leituras, concertos, dar aulas. Os jovens, lá, leem Harry Potter. Um dia, alguns deles vão descobrir que a poesia permite voar.
Al-Maaly. Há a literatura que vende muito, que os jovens consomem, e há os escritores como Thomas Mann, Musil e Joyce, que precisam de tempo para serem conhecidos. Paul Celan teve uma primeira tiragem de mil exemplares e agora, a cada ano, novas impressões são feitas. Precisamos de tempo e precisamos mudar o gosto dos jovens.

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